
Seu dia começava às quinze pras sete
por Lia.
Seu dia começava às quinze para as sete. Religiosamente, ia a cozinha, botava água para ferver, pegava o jornal do lado de fora, voltava, escovava os dentes, trocava de roupa, tirava a água do fogo, preparava uma caneca de café solúvel em pó com três colheres de sopa e nenhum açúcar, acendia um cigarro, se posicionava à janela do sétimo andar, onde morava, abria o jornal e olhava. Seu dia efetivamente começava quando ela, no quinto andar do prédio em frente, acordava às sete e dez, regava um vaso de gerânios – o décimo-primeiro desde que ele começara a observá-la – fechava as cortinas, abria-as de novo quarenta minutos depois – já de banho tomado e vestida para sair – saía do campo de visão, provavelmente para pegar os brincos e a bolsa, fechava as janelas e desaparecia, para reaparecer na portaria, de onde pegava sempre o caminho à esquerda, passava na banca de jornais, dobrava a esquina, andava reto uns três quarteirões, atravessava uma grande avenida, andava mais duas quadras à direita e chegava ao escritório.
Então ele se sentava ao computador, digitava textos, revisava artigos para uma revista especializada em roteiros de viagem, escrevia monografias, e ao meio dia e cinco ia almoçar no mesmo restaurante onde ela e suas colegas chegavam todo dia ao meio dia e dez.
Ele passava pelas saladas, se servia de beterraba ralada, dois ovos de codorna, a massa do dia, alguma carne e um pouco de arroz, pedia um mate e ia para a mesa do canto. Ela passava alguns minutos decidindo qual salada iria comer, para sempre se decidir pela de alface com molho rosé, se servia de meia colher de arroz e sempre completava com peixe ou frango. Para beber, um suco de abacaxi com hortelã. Sentava-se com as colegas, falava alguma coisa sobre trabalho, uma das moças falava de seus relacionamentos fracassados, a outra – que tinha um filho de três anos – apenas sorria de vez em quando, exatamente quarenta minutos depois elas levantavam, pagavam a conta, e só então ele pedia um café, acendia um cigarro e saía assim que terminava.
Voltava para casa, começava suas duas horas e meia diárias de leitura (no momento, estava no meio de uma ficção sobre um homem que tinha sua identidade confundida com a de seu avô libanês) e, ao fim dessas duas horas e meia, ligava a televisão para pegar sempre uma nova receita com a mulher do canal 5. Sabia que nunca iria querer fazer um lombinho assado recheado de cogumelos com molho de páprica, mas agradava-lhe a idéia de que isso um dia pudesse ser útil. Sentava de novo ao computador, acendia outro cigarro e revisava outro artigo.
Ela chegava em casa, fechava as cortinas, abria-as de novo e aparecia de calça de moletom. Ia para a sala, sentava em sua bicicleta ergométrica e tinha o hábito de ler enquanto pedalava sem sair do lugar, durante uma hora. Ele não conseguia enxergar bem o que era dessa vez, só sabia que era um daqueles clássicos de capa vinho. Sabia também que a leitura a fazia chorar de vez em quando.
Aos sábados, seu dia começava às oito e meia, e às oito e quarenta e cinco ela acordava, abria as janelas, ligava o som bem alto (ele imaginava que estivesse alto mas não conseguia ouvir) e dava uma geral na casa. Às dez e meia ele ia à feira, e às dez e trinta e oito ela passava por ele em frente à barraca do peixe. Ele levava condimentos – que não iria usar – e ela levava basicamente frutas em sua cesta. Todo sábado, por volta de uma da tarde, ela recebia a visita de um casal de mais ou menos o dobro de sua idade. Ela tinha um nariz peculiar, e o homem também, de onde ele concluía que deviam ser seus pais. Almoçava com eles, ia para a sala conversar, o casal saía e às vezes ela chorava.
De sábado à noite até segunda-feira pela manhã, ele não a via. Então começava tudo de novo. Ele acordava, se preparava para observá-la, ela acordava, regava as plantas já meio murchas – os gerânios começavam a murchar depois quatro dias e deveriam ser trocados em duas semanas. Às vésperas do décimo segundo vaso, ele acordou às quinze pras sete, preparou seu café, pegou seu jornal, acendeu seu cigarro, ela acordou, regou seu vaso de.. crisântemos. Não eram mais gerânios. E ela saiu como sempre saía, passou por onde passava e dessa vez ele foi atrás. Pegaram o caminho à esquerda, passaram na banca de jornais, dobraram a esquina, andaram reto uns três quarteirões, atravessaram uma grande avenida, andaram mais duas quadras à direita, ela subiu para o escritório e ele ficou ali, sem saber o que fazer.
Meio atordoado com aquela obsessão por aquela mulher, atravessou a rua e quase foi atropelado por uma bicicleta que passou de raspão.
“Machucou?”, disse a ciclista.
“Não”, ele respondeu, meio puto “mas obrigado por perguntar”.
Ela sorriu, o que o deixou absolutamente constrangido, e seguiu o rumo pela ciclovia. Ele continuou ali, parado, sem saber o que fazer. O zelador do prédio onde a mulher-obsessão-doentia trabalhava começou a se sentir incomodado com a constante presença daquele cara estranho, fumando compulsivamente na entrada do edifício e olhando para os lados.
“Desculpe, o senhor está esperando alguém?”
“Ahn. Sim.” , e continuava olhando para os lados, agora esperando a garota da bicicleta voltar pelo mesmo caminho.
por Lia.
Seu dia começava às quinze para as sete. Religiosamente, ia a cozinha, botava água para ferver, pegava o jornal do lado de fora, voltava, escovava os dentes, trocava de roupa, tirava a água do fogo, preparava uma caneca de café solúvel em pó com três colheres de sopa e nenhum açúcar, acendia um cigarro, se posicionava à janela do sétimo andar, onde morava, abria o jornal e olhava. Seu dia efetivamente começava quando ela, no quinto andar do prédio em frente, acordava às sete e dez, regava um vaso de gerânios – o décimo-primeiro desde que ele começara a observá-la – fechava as cortinas, abria-as de novo quarenta minutos depois – já de banho tomado e vestida para sair – saía do campo de visão, provavelmente para pegar os brincos e a bolsa, fechava as janelas e desaparecia, para reaparecer na portaria, de onde pegava sempre o caminho à esquerda, passava na banca de jornais, dobrava a esquina, andava reto uns três quarteirões, atravessava uma grande avenida, andava mais duas quadras à direita e chegava ao escritório.
Então ele se sentava ao computador, digitava textos, revisava artigos para uma revista especializada em roteiros de viagem, escrevia monografias, e ao meio dia e cinco ia almoçar no mesmo restaurante onde ela e suas colegas chegavam todo dia ao meio dia e dez.
Ele passava pelas saladas, se servia de beterraba ralada, dois ovos de codorna, a massa do dia, alguma carne e um pouco de arroz, pedia um mate e ia para a mesa do canto. Ela passava alguns minutos decidindo qual salada iria comer, para sempre se decidir pela de alface com molho rosé, se servia de meia colher de arroz e sempre completava com peixe ou frango. Para beber, um suco de abacaxi com hortelã. Sentava-se com as colegas, falava alguma coisa sobre trabalho, uma das moças falava de seus relacionamentos fracassados, a outra – que tinha um filho de três anos – apenas sorria de vez em quando, exatamente quarenta minutos depois elas levantavam, pagavam a conta, e só então ele pedia um café, acendia um cigarro e saía assim que terminava.
Voltava para casa, começava suas duas horas e meia diárias de leitura (no momento, estava no meio de uma ficção sobre um homem que tinha sua identidade confundida com a de seu avô libanês) e, ao fim dessas duas horas e meia, ligava a televisão para pegar sempre uma nova receita com a mulher do canal 5. Sabia que nunca iria querer fazer um lombinho assado recheado de cogumelos com molho de páprica, mas agradava-lhe a idéia de que isso um dia pudesse ser útil. Sentava de novo ao computador, acendia outro cigarro e revisava outro artigo.
Ela chegava em casa, fechava as cortinas, abria-as de novo e aparecia de calça de moletom. Ia para a sala, sentava em sua bicicleta ergométrica e tinha o hábito de ler enquanto pedalava sem sair do lugar, durante uma hora. Ele não conseguia enxergar bem o que era dessa vez, só sabia que era um daqueles clássicos de capa vinho. Sabia também que a leitura a fazia chorar de vez em quando.
Aos sábados, seu dia começava às oito e meia, e às oito e quarenta e cinco ela acordava, abria as janelas, ligava o som bem alto (ele imaginava que estivesse alto mas não conseguia ouvir) e dava uma geral na casa. Às dez e meia ele ia à feira, e às dez e trinta e oito ela passava por ele em frente à barraca do peixe. Ele levava condimentos – que não iria usar – e ela levava basicamente frutas em sua cesta. Todo sábado, por volta de uma da tarde, ela recebia a visita de um casal de mais ou menos o dobro de sua idade. Ela tinha um nariz peculiar, e o homem também, de onde ele concluía que deviam ser seus pais. Almoçava com eles, ia para a sala conversar, o casal saía e às vezes ela chorava.
De sábado à noite até segunda-feira pela manhã, ele não a via. Então começava tudo de novo. Ele acordava, se preparava para observá-la, ela acordava, regava as plantas já meio murchas – os gerânios começavam a murchar depois quatro dias e deveriam ser trocados em duas semanas. Às vésperas do décimo segundo vaso, ele acordou às quinze pras sete, preparou seu café, pegou seu jornal, acendeu seu cigarro, ela acordou, regou seu vaso de.. crisântemos. Não eram mais gerânios. E ela saiu como sempre saía, passou por onde passava e dessa vez ele foi atrás. Pegaram o caminho à esquerda, passaram na banca de jornais, dobraram a esquina, andaram reto uns três quarteirões, atravessaram uma grande avenida, andaram mais duas quadras à direita, ela subiu para o escritório e ele ficou ali, sem saber o que fazer.
Meio atordoado com aquela obsessão por aquela mulher, atravessou a rua e quase foi atropelado por uma bicicleta que passou de raspão.
“Machucou?”, disse a ciclista.
“Não”, ele respondeu, meio puto “mas obrigado por perguntar”.
Ela sorriu, o que o deixou absolutamente constrangido, e seguiu o rumo pela ciclovia. Ele continuou ali, parado, sem saber o que fazer. O zelador do prédio onde a mulher-obsessão-doentia trabalhava começou a se sentir incomodado com a constante presença daquele cara estranho, fumando compulsivamente na entrada do edifício e olhando para os lados.
“Desculpe, o senhor está esperando alguém?”
“Ahn. Sim.” , e continuava olhando para os lados, agora esperando a garota da bicicleta voltar pelo mesmo caminho.
Texto da Lia mas não é meu =P!
Muito bom o texto!
Beem anciosa eu estou. Mais passa!
Beeijos
;***
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